terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Um conto de Matilda

Matilda, como tantos outros, era apenas uma estagiária procurando conquistar o seu espaço. Sempre decidida e esforçada, se preparou muito para ser "alguém" na vida, sempre tirou boas notas na escola, fez curso técnico, está na faculdade, começou a trabalhar na área já nos primeiros semestres. Apesar de receber uma ajuda dos pais, sempre procurou ajudar no que podia, seja em casa ou com a mensalidade da faculdade. Depois de passar por dois estágios em que era apenas "mão-de-obra barata", conseguiu uma vaga em uma empresa que aparentemente tinha um programa de estágio de verdade, que desenvolvia e absorvia seus estagiários para o quadro de funcionários.

Após alguns meses no novo emprego, Matilda começou a perceber que as coisas não eram bem como lhe falaram. Era uma empresa familiar, onde o principal requisito para ser promovido, ou mesmo receber um aumento, é ser parente ou amigo próximo dos donos. Um ambiente onde quem não está no circulo íntimo de amizades dos donos e diretores é tratado como lixo, literalmente. Após um ano de estágio, e nada de se falar em efetivação, Matilda se viu assumindo funções de Bartolomeu e Rosana, que já estavam a 10 anos na empresa quando foram demitidos, Bartolomeu foi dispensado por ficar doente, de cama, e faltar UM dia do trabalho, já Rosana foi considerada incompetente por se negar a mudar de setor, ela passaria a fazer café e tirar cópias de documentos o dia inteiro. Com o tempo, pessoas pedindo as contas passou a ser algo comum, e Matilda simplesmente foi acumulando funções de outras pessoas.

Apesar de tudo, Matilda sempre se esforçou para dar conta de tanto trabalho, mesmo com o histerismo de Jorge, seu diretor. Jorge é o tipo de pessoa que quer tudo pra ontem, adora se gabar, dizer que é o bom, não consegue fazer nada sozinho, mas tem uma garganta muito boa(seus berros são bem potentes).

Se você acha isso atormentante, saiba que o tormento de Matilda estava apenas começando. Em uma bela manhã de sexta, Jorge decidiu que iria assistir o carnaval do Rio de Janeiro, e para isso, mandou que Matilda conseguisse lugares no camarote vip do sambódromo para ele e sua mulher. Após uma manhã inteira de ligações, e-mails, faxes, e nada de conseguir o tal camarote vip para Jorge, Matilda decidiu trabalhar de verdade, e fazer o faturamento de uma conta que já estava atrasado. Esse faturamento era algo em torno de 400 mil reais para a empresa, afinal, é pra isso que era paga e não para resolver coisas pessoas de Jorge.

Jorge, inconformado por Matilda deixar um assunto tão importante de lado, passou a se certificar pessoalmente de que Matilda sempre desse o seu "melhor". E procurou fazer isso no seu melhor estilo, humilhando-a em cada oportunidade que tinha. Para Jorge, Matilda não era capaz de fazer uma ligação direito, não conseguia preparar documentos direito, tudo estava mal-feito, errado e atrasado. Matilda passou a ter ainda mais trabalho a fazer, e como nem sempre dava conta, passou a ser considerada mais incompetente a cada dia, e Jorge usava cada uma destas chances.

Em certa ocasião, já no limite, Matilda estava decidida a sair daquele inferno. Depois de literalmente explodir e gritar e xingar meio mundo, seu gerente, Fábio, a convenceu a tirar a tarde de folga, descansar e pensar melhor. A noite, Fábio ligou para Matilda novamente e a convenceu a continuar na empresa, porque logo iriam resolver a situação dela.

Realmente, a situação foi resolvida três semanas depois, após 3 meses de humilhações acabou o contrato de estágio de Matilda com a empresa. Adivinhe o que aconteceu? Matilda foi dispensada, e adivinha o que mais pesou? Foi justamente Matilda ter deixado de lado o tal camarote vip de Jorge, para TRABALHAR e faturar para a empresa.

Agora, enquanto Jorge vai gastar míseros 200 reais a mais do que planejava para aproveitar o seu camarote vip no carnaval, Matilda tem que procurar emprego em meio a maior crise dos últimos tempos. A bolsa-estágio ajudava, e bastante a pagar a mensalidade da faculdade, e mesmo com todas estas humilhações, Matilda sempre aguentou firme, pois estava em busca de um futuro melhor.

É nessas horas que percebo que o ser-humano sabe ser uma criatura egoísta, mesquinha e baixa. Humilhar uma pessoa durante meses até o seu limite, depois convencê-la a não pedir demissão, só para poder demiti-la e "sair por cima" é o fim. E só para constar, esta historinha é muito mais real do que muita gente pode imaginar, mas tenho certeza que Matilda vai tirar de letra, afinal ela já passou por situações bem piores que essa e sempre que a coisa apertou, me deixou muito orgulhoso.

2 comentários:

Unknown disse...

É Miltão... infelizmente é tudo verdade o que você disse. E eu também já passei por isso.
Isso ocorre tanto pelo instinto egoísta natural do ser-humano, como também por causa dos antigos paradigmas organizacionais que enxergam o funcionário como meras engrenagens da empresa. Isso vem desde Taylor... e o paradigma “Taylorismo” é o que predomina até hoje, infelizmente. Não que as idéias dele não tenham contribuído bastante pra evolução da gestão empresarial, porém o tempo passa e “as idéias” devem evoluir também. E essa evolução já vem acontecendo, aos poucos, com um novo paradigma que valoriza muito mais o capital humano. Não é apenas substituir o termo funcionário por colaborador só para instituir uma falsa sensação de democracia, não é apenas substituir o termo chefe por líder e continuar “estralando o chicote” para os subordinados. Às vezes não entendo como que no século XXI ainda existam gestores que olham pra pessoas e enxergam máquinas.
Quando falo de “gerenciamento moderno” o primeiro nome que me vem na cabeça é Deming – foco dos meus estudos atuais – e no seu famoso “saber profundo” uma das quatro grandes divisões é destinada apenas ao assunto psicologia, que deixa explícito para os que ainda não entenderam que pessoas são diferentes de máquinas... que cada pessoa aprende de um jeito... que cada pessoa reage de um jeito... que não se pode comparar pessoas... que toda pessoa é dotada de qualidades e defeitos... etc.

J.F. de Souza disse...

Acho que qualquer trabalhador que começa de baixo - em qualquer área - já teve dias de Matilda. Isso sem contar os que seguem sua vida profissional exatamente da mesma forma que a relatada nesta história aê...
É revoltante ver até que ponto um ser humano pode ser mesquinho e baixo. Mas triste mesmo é ver que a humildade do outro acaba de forma trágica.